“Meu distúrbio, não diagnosticado pelos mais renomados especialistas, não aceito pelos filósofos e religiosos, torna insuportável a minha vida. Todos à minha volta temem a morte, eu temo o nascimento.
Devo explicar a minha situação, porque não tenho amigos que saibam dela e pretendo terminar a minha vida de uma forma que me seja familiar (já que me é possÃvel, penso que a ninguém mais esta oportunidade foi dada).
Não me lembro de meu nascimento. Ninguém o lembra, mas meu caso é diferente: lembro-me da minha morte. O futuro preenche minha memória, minhas lembranças foram chamadas de presciência, vidência e outras palavras que aludem ao que duvidam; logo não sei nada sobre o passado.
Meu distúrbio é viver do avesso: morri, rejuvenesci, passei a trabalhar, vi pessoas queridas levantarem dos túmulos (eram-me queridas, contudo nunca me deram importância), meus cabelos cresceram e ganharam cor. Quando me perguntavam como foi meu dia não sabia o que dizer.
Eu fui sempre uma mácula na realidade alheia, um defeito a ser rejeitado.
E agora meu tempo se aproxima do fim, já sou adolescente e temo o nascimento, que será o fim de minha vida. Tive a vantagem de ler sobre relatos do nascimento, do trauma que causa ao bebê, da dor, do choro; soube de outras formas de parto, mas como pedir a minha mãe que mude seu passado? Ela mesma não pode ler sobre a morte, que eu já conheço, e não pode me entender.
Na verdade, hoje, meus pais quase não falam comigo. Falam o mÃnimo, oferecem comida, levam-me à escola, perguntam sobre as notas, brigam com isso ou aquilo, mas nunca conversam sobre meu distúrbio.
Não, não quero enfrentar este fim.
– Daniel E.â€
Esta foi a carta encontrada ao lado do corpo de um garoto prodÃgio que suicidara jogando-se de uma ponte, ninguém lhe conhecia e não constava em nenhum registro: oficialmente, não tinha passado.
Primeiro desci aquela escada, de um cinza cru que parecia sujo, até o subsolo. Muita gente fazia o mesmo, com passo apressado, sem olhar para os lados, como não se notassem. Vestiam tantas cores, mas as roupas eram tão parecidas (talvez não pensassem assim, pensassem as diferenças mÃnimas e quase imperceptÃveis como cabais) e seus cabelos, suas expressões de incômodo constante (como podem não fazer nada contra isso?) sempre muito parecidos.
Passei pelos braços de metal, depois de encostar um retângulo de plástico em um sensor (feio como as escadas, as paredes e tudo à minha volta – sem graça, de desenho apenas utilitário) e desci mais.
Cinza, de novo, só uma parede agora tinha uma faixa colorida, verde bandeira. Um buraco, qual sulco na terra, com barras paralelas enormes de um material que parece ser uma liga de ferro, seguiam por seu fundo até entrar num túnel, dos dois lados.
De um dos lados vi o túnel se iluminando: vinha uma caixa de metal com faróis, e conforme passava via que outras caixas estavam atreladas à primeira. Portas se abriam, na mesma altura que a plataforma onde eu estava. Pessoas saÃam, entravam, se acotovelavam; infelizes, como sempre.
(Se tudo é motivo de infelicidade, por que não fazem diferente?)
Entrei também eu. Lá dentro tudo era iluminado, todos se sentaram em bancos coloridos. Aqui dentro as paredes tinham cores suaves, também o chão – apesar de ainda parecer muito sujo.
E aquilo voltou a se mover. Ninguém pareceu dar importância. Notei que quem tinha bolsa a segurava no colo; abraçada, sempre; mesmo o moço que dormia (pelo seu rosto tranquilo pensei ser um enfermeiro ou estudante de medicina, não podia ser médico formado, cheio das preocupações diárias não teria a expressão tão tranquila: que desmanchou, depois, quando ele acordou, voltando à comum face infeliz).
Uma voz feminina soou vinda de todo canto: “Próxima estação: Chácara Klabinâ€. Voz feminina no subsolo, no “útero da Terraâ€, porque soa como mãe? Mas ela não tinha voz de mãe de todos, era voz jovem, mas não infantil ou adolescente. Mas porque imitar o conforto materno em lugar tão iluminado? Associam a luz ao primeiro lar? Mas não é em um ambiente tão claro como este que a maioria desses (exceto aqueles que nasceram de parto humanitário) sofreu a primeira perda, o primeiro trauma? Porque recriar isso?
E pensando nisso passaram outras estações (nome curioso isso tem, associei com “lugar pra se estarâ€, mas é “lugar que se paraâ€), como a misteriosa voz anunciou. Passaram lugares cinzas, voltamos à superfÃcie e descemos de novo, uma estação com luzes verdes. Por que verdes? Depois branca. E não bastando voltar à superfÃcie, fomos a uma ponte alta sobre um rio, e debaixo da terra de novo.
E apesar de mudanças assim, ninguém mudou a expressão, tudo era tédio nos olhos dessas pessoas. Andavam por sob e sobre a terra numa caixa de metal sobre trilhos, vestindo roupas estranhas que atrapalham a mobilidade, e que pioram a sensação de calor, se irritariam se eu dissesse que aquilo é um trem, chamam de metrô, e só metrô. Trem é outra coisa. Mas exatamente igual.
Cada amor que sentia lhe custava parte da alma. Cada carinho que oferecia deixava ali parte de si. Pena para ele que nutria apreço não apenas por humanos. Viajava, pelos lugares se apaixonava; dançava, pela música se afeiçoava; sentia um perfume, por ele se doÃa. E tanto se deixou, se partiu, que se quebrou: em cacos, fragmentos minúsculos, para que mais amasse. Ao vento amou, ao sol, à lua. Sentiu saudade das estrelas. Espatifou-se pelas pessoas que conheceu. Pedaço a pedaço, caco a caco, aqui e ali, antes e depois, agora e não mais. Sobrava-lhe sempre algo mais a dar: meia-vida de coração inteiro. Quanto mais se lascava, mais polido ficava; quanto mais partido, mais definido. Deu-se, que de tanto doar, tinha embaixadores de si a todo canto, misturara-se ao vento e à terra; já não era mais nada, mas tudo tinha dele um pouco.
“Meu distúrbio, não diagnosticado pelos mais renomados especialistas, não aceito pelos filósofos e religiosos, torna insuportável a minha vida. Todos à minha volta temem a morte, eu temo o nascimento. Devo explicar a minha situação, porque não tenho amigos que saibam dela e pretendo terminar a minha vida de uma forma que me seja familiar […]