O Sequestro

Vou contar uma de minhas experiências mais absurdas: a de como eu descobri que minha consciência vive em meu coração, apenas nele, e em nenhuma outra parte de meu corpo. Infelizmente, foi também o dia em que ganhei uma cicatriz nele.

Eu estava em meu quarto, limpando-o, e de repente senti: o corpo caindo no chão, uma lufada de vento, um bafo quente, uma mordida; e me percebi sendo levado na boca de um lobo.

O animal corria alegre, cansado e satisfeito em direção a uma falésia. Meu sangue escorria por sua boca e eu sentia cada movimento dele como meu. Eu ouvia ondas do mar quebrando penhasco abaixo, e pareciam cada vez mais próximas.

Amedrontei-me. Pularia ele desta altura? Sequestrou-me para suicidar matando-me? Ele não parou, continuou seguindo até a beira e desceu por um caminho que antes eu não vira, o qual levava a uma caverna. Mas eu não a vi. Em meu terror, meus batimentos se aceleraram, minha ferida ficou maior e meus músculos (os cardíacos, mas só poderia deles ter, já que era só coração àquele momento) tencionaram-se com tanta força que a dor foi lancinante a mim e ao lobo, que, ganindo, largou-me à queda.

O vento me carregou, levou-me de volta à segurança. Eu lhe pedi que me levasse de volta a meu corpo, mas ele disse que já não possuía corpo, que como era agora não poderia retornar. E me largou sobre um bosque.

Era num morro, e rolei entre as folhagens, quando parei, conseguia ver o lugar, sentir o cheiro de folhas podres, umidade e lama, percebia a escuridão, ouvia os sons desconfiados de animais correndo a se afastar. Eu era um corpo de folhas secas e lama, não parecia muito diferente de um humano, ao contrário, parecia um homem com vegetação colada à pele. Mas o coração batia com dificuldade.

O problema de uma aventura destas é que enquanto se a vive, não há tempo para percebê-la. Antes eu não notara, mas agora eu estava certo que, quando fugi do lobo, seu dente ficou preso em mim, quando caí de sua boca, o arranquei com a pressão de meus músculos. E, em minha consciência, algo ressoava e justificava que era a presa do animal que não me permitia voltar à minha vida comum: eu desejava livrar-me daquilo.

Não tinha unhas: foi o que primeiro pensei, depois de assentar em minha mente a ideia de me libertar do dente de qualquer forma, mesmo cavando-me o peito com a mão. Não conseguia imaginar forma de realizar meu intento. Então comecei a vaguear.

Escorreguei; rolei mais, no que já não era morro, era ladeira. Caí numa caverna em algum momento, ou de novo o mundo se distorceu, porque não havia mais luz, não havia mais umidade, não havia mais nada além de sombra.

Pensei que seria outro mundo, e, mesmo agora, não sei o que era. Mas caminhei no escuro, até me acostumar e começar a enxergar algo, então ruídos, chiados e rosnados começaram a esgueirar-se perto de mim. Queriam-me. E eu corri, aflito, desesperado e, finalmente, tranquilizado, quando avistei uma casa (dizer que avistei uma casa num lugar destes soa exagero, eu colidi  com ela porque não a pude ver a tempo de parar). Consegui entrar, e, depois de passar por um salão e fechar a porta por trás de mim, vi luz e pessoas, não como eu, não como nada que se possa imaginar: nada semelhantes aos mais absurdos sonhos.

Uma dessas pessoas (que não tinha forma, ora parecia uma menina inocente, outrora cadáver, no momento seguinte um cachorro, e então um poste, para ser de novo uma garota, mas com olhos vermelhos e sorriso que mostrava dentes com duas afiadas pontas cada; mas apesar da aparência instável, tinha uma identidade muito fácil – e intrigantemente – reconhecível) apresentou-se como uma bruxa.

Eu já não tinha choque, não tinha medo de pequenas coisas como essa numa pessoa, eu temia os monstros das trevas que queriam me comer, eu tinha certeza que queriam isso e a feiticeira mo confirmou: disse-me que meu coração tinha uma pérola que brilhava, e luz naquele mundo era a perdição: era alimento dos seres, por isso deveria ser muito bem escondida.

Ela me propôs então que eu lhe desse o dente e, assim, poderia deixar a casa e não ser mais um problema dela. No momento me pareceu um ótimo negócio e aceitei-o sem pensar. E o foi feito, sem complicações.

Deixei-lhe o dente-pérola e parti. Desta vez meus olhos não se acostumaram às trevas, que eram absolutas, mas encontrei meu caminho de volta até o bosque.

Lá encontrei o vento, e pedi-lhe que me levasse a meu corpo, agora que me livrara do que pensara ser o problema. Engano meu. E, ledo, o vento disse-me para buscarmos o dente e usá-lo para retornar a meu lugar.

Ventos são como são: ora flutuam a um lado, ora a outro; ora dizem, ora contradizem; sem razão, sem emoção, simplesmente mudando sem padrão. Mas era-me a única chance e o único que poderia me ajudar, então segui-lhe as instruções.

Parti de novo ao mundo das sombras, fui até a casa da bruxa e abri as portas. Não precisei de mais que isso para causar enorme confusão. Monstros apareceram de todos os lados, comendo suas velas e toda a sua luz. Contudo consegui esconder o dente que brilhava ainda mais.

Muito rápido, corri de volta ao bosque, sem saber o que aconteceu à informe mulher. Lá o vento me engoliu e carregou-me de volta a meu corpo humano (o de folhas e lama eu perdi, enquanto fugia das trevas).

Quando era eu mesmo novamente, pensei que foi  só um sonho, mas meu peito doía e meu punho estava muito apertado, sangue escorria entre meus dedos e a palma de minha mão doía: era o dente machucando-me. Olhei no espelho e vi uma cicatriz em meu peito.



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13
Dec
2010

Daniel E.

“Meu distúrbio, não diagnosticado pelos mais renomados especialistas, não aceito pelos filósofos e religiosos, torna insuportável a minha vida. Todos à minha volta temem a morte, eu temo o nascimento. Devo explicar a minha situação, porque não tenho amigos que saibam dela e pretendo terminar a minha vida de uma forma que me seja familiar […]

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