Nov
2007
A TÃlia
Mais um dia.
TÃlio, o aposentado, estava em seu posto de sempre, na rua. Observava as pessoas: suas atitudes, roupas, gestos, conversas, olhares; de algumas deduzia a personalidade, refletia sobre elas e seus valores. Tentava desvendar os mistérios da alma humana.
Tinha certo repúdio por árvores e animais, mas ficava sempre numa alameda cheia de tÃlias, irritava-se com suas folhas secas caindo a seus pés. Era pior quando o vento as fazia roçar em seu corpo durante a queda! Não suportava quando isso acontecia, e praguejava muito!
Era um desses velhos ranzinzas, com muito assunto, mas pouca disposição para conversar. Raramente se dirigia a alguém e normalmente era para julgar, aconselhar com petulância, ou condenar: tantas vezes quis dar uma bofetada em alguma criança traquinas! Mas seu chamado sempre foi ignorado, quando muito lhe dirigiam um olhar apressado e logo desviavam, pisando nas folhas secas de tÃlia, com aquele detestável crec-crec. Assim, estava sempre sozinho, ali para julgar qualquer transeunte, sob chuva e sol, no frio e no calor.
Não tinha noção de tempo, perdia-se nele entretido com suas observações sobre os outros; não tinha posses; não tinha mais amigos ou famÃlia, há muito não via um rosto familiar de sua época amigável e parecia fazer questão de não conhecer gente nova. Era rÃgido consigo mesmo, não se permitia pensamentos depravados, não se deixava desviar a atenção do julgamento dos outros. Os outros: seus eternos réus.
Mas a Eternidade se manifesta fora do tempo, e não era neste campo que TÃlio observava. Seu olhar crÃtico esqueceu-se de julgar a si mesmo e colocar-se em seu lugar, e, como ironia presenteada como vingança pela própria Eternidade, um dia todo seu mundo e seu julgamento caÃram. As drÃades das tÃlias fizeram cair as folhas de toda a alameda naquele dia. Eternidade, princesa do além-tempo, que jamais poderia entrar nos reinos do prÃncipe Tempo, enviou seu carro carregado com aquilo que faria cair a torre onde se passava o julgamento de TÃlio. Nele veio sua Morte, não para arrebatá-lo, mas para domar sua alma, para enforcar a Arrogância que lhe tomou e atirá-la entre o sol e a lua, fazer brilhar uma nova estrela na alameda dos loucos, dos pioneiros e dos amantes. TÃlio, o prÃncipe rabugento daquele mundo, perder-se-ia no seu lugar de fantasias e excessos; tornar-se-ia andarilho perdido, viveria pela sorte num mundo de sombras; e, ali, de olhos vendados, encontraria de novo seu equilÃbrio, ou cairia na loucura, de onde nunca voltaria.
Uma criança se aproximou com um cachorro, pequeno e tão doce. Pareciam dois seres do outro mundo, levando notÃcias e mensagens a um grande homem. TÃlio não resmungou. Vinham em sua direção, e isso o excitou, o extasiou: enfim, companhia!
O cachorro tomou a frente, era branco e suas orelhas amarelas, só elas não eram brancas naquele animal que dançava, não corria.
Cheirou os pés de TÃlio, abanava o rabo. Ele o notou!
Como era bom ser notado, ser percebido. Até se sentia amado, aquela alegria do cão não podia dar-lhe outra interpretação. O animal olhou para o alto, para ver TÃlio inteiro! A felicidade do velho foi tanta que sentiu seu coração se derretendo até seus pés ficarem úmidos…
– Beni! Não faça xixi nas árvores! – O garoto gritou. Para o cachorro. TÃlio se  arrepiou. O céu estava nublado; mas o sol aparecia, baixo, perto do horizonte, caindo lentamente para se pôr, irradiando uma luz cruel e mórbida, sarcástica, mostrando a TÃlio a urina do cachorro, que brilhava em seus pés.
“Não faça xixi nas árvores!†Mas o cão urinou nele! TÃlio teve medo. O menino continuou seu caminho sem nem lhe pedir desculpas, o cachorro seguiu correndo pela alameda. Ele não conseguia abaixar-se para limpar os pés.
O vento do entardecer fez cair mais folhas perto dele, elas o irritaram mais, mas não resmungou, notou que as pessoas passavam por ele sem o olhar: ele sabia que costumavam observar e rir às escondidas quando alguém passava molhado por ali, como ele devia estar, mas não dele; e não era respeito, era indiferença. Não sentiam graça ou indignação; mal olhavam, aquilo lhes era natural.
Tentou pedir ajuda, mas o ignoraram.
Então começou a pensar sobre como as coisas mudaram. Lembrou-se quando era um respeitado homem em sua vizinhança, que teve famÃlia um dia, mas só tinha reminiscências. Buscou em sua memória, mas nada encontrou por toda aquela noite. Perdeu-se no tempo, de novo.
E, ao amanhecer, viu uma movimentação estranha na rua: bombeiros com serras para cortar árvores preparavam-se para cortar alguma tÃlia. Ficou realmente feliz com isso, uma dessas árvores-despenca-folhas a menos para importuná-lo. Mas só cortavam árvores doentes, ele saberia reconhecer uma, mas não a encontrou. As serras foram ligadas, o perÃmetro de segurança montado. Começaram a cortar.
TÃlio se lembrou.
Sua famÃlia vivia bem: seu filho trabalhava e sua esposa era uma boa avó, fazia doces aos fins de semana e à s vezes sentia falta dele; mas viviam bem. Ele tivera um infarto há muito tempo e morrera.
Viu então como as pessoas se vestiam diferente, como o mundo era outro, e os anos se passaram. Ele renascera e era árvore. Só se deu conta disso quando morria de novo.
Só tinha uma lasca de tempo até ser tomado, novamente, pelos braços da Eternidade, entre os mortos. Apenas este momento para sentir o mundo como árvore. Sua arrogância o cegara e nunca admitiu sua condição.
O primeiro galho caiu.
(revisado em 15 de setembro, 2010)
Discussão
Eu tive o prazer de ler este texto ano passado, eu acredito. Tanto tempo passou e ainda gosto e me identifico comessas linhas.
Bravo, bravo, meu amigo.
ph diz:
16 Nov 2007 às 01:49belo texto! =P
extraio da leitura:
arrogância é não (saber) sentir.
e como faço (pra saber)?
acho que criei raÃzes…
Cadu Garcia diz:
30 Jun 2008 às 11:03[…] num dos arcanos maiores, é uma idéia bem interessante, e eu cheguei a usar, quando escrevi A TÃlia usando três cartas que tirei do tarot de arcanos maiores que vêm com o […]